A VEGETAÇÃO PAGA DA SUA MANEIRA?
A VEGETAÇÃO PAGA
DA SUA MANEIRA?

Victor M. Ponce

[Traduzido do inglês
por Samara Salamene]


♦ A pergunta certa

A vegetação consome uma certa quantidade de água. As plantas não podem sobreviver, muito menos florescer, sem uma quantidade considerável do líquido precioso. Portanto, a pergunta apropriada é: em um mundo onde a água é um recurso escasso, a vegetação está pagando à sua própria maneira? Em outras palavras, a vegetação está produzindo sua própria água? Esta questão tem implicações práticas em engenharia hidrológica, restauração de bacias hidrográficas e riachos e manejo de ecossistemas.

Primeiro, devemos responder à pergunta relacionada: a vegetação produz água? E, se sim, quanto? Produz mais água do que consome? Se produz mais água do que consome, a vegetação seria um ativo; caso contrário, seria um passivo. Para ajudar a resolver esse problema, neste artigo, procuramos explorar a relação entre terra, água, plantas e energia.


♦ De onde vem a água?

Toda a água doce vem da precipitação; no entanto, não chove a mesma quantidade em todos os lugares. Regiões como o deserto do Saara são conhecidas por terem tão pouca água que quase nada pode viver lá. Outras, como a Floresta Amazônica, prosperam com vida de todos os tipos, apresentando a maior biodiversidade da Terra. Algo deve tornar os desertos diferentes das florestas tropicais. Pode-se argumentar que chove mais em uma floresta tropical; assim, há mais água e, consequentemente, mais vegetação. Portanto, o foco muda para: Por que chove mais em uma floresta tropical? Ou melhor ainda: por que chove? O que leva a: Como chove?

Desert and rainforest landscapes   Desert and rainforest landscapes

Fig. 1  Paisagens do deserto e da floresta tropical.


♦ Como é produzida a chuva?

As nuvens produtoras de chuva são sustentadas pelo acúmulo de umidade, condensação e coalescência. Todos os três processos devem estar presentes para que a precipitação ocorra em quantidades significativas. Acumulação significa que deve haver uma fonte constante de umidade por perto. Condensação significa que a umidade deve condensar para a forma líquida. Coalescência significa que as gotas líquidas precisam adquirir tamanho e peso suficientes para precipitar. Nas regiões onde chove muito, todos esses três processos são muito ativos. Por outro lado, em regiões áridas, qualquer um desses processos pode estar ausente ou fraco o suficiente para dificultar ou limitar a produção de gotas de chuva.

A umidade atmosférica varia dentro de uma faixa estreita. Nas regiões úmidas, a umidade atmosférica é de 45 a 50 mm, enquanto nas regiões polares e áridas é de 2 a 15 mm.1 Assim, a umidade é quatro a cinco vezes maior nas regiões úmidas do que nas regiões áridas; no entanto, a chuva pode ser cem vezes maior. Portanto, concluímos que a disponibilidade de umidade por si só não explica todo o fenômeno.

A condensação é muito importante para a formação de chuva. A maneira mais fácil de condensar a umidade é por meio do resfriamento, e a Natureza fornece várias maneiras para as massas de ar carregadas de umidade esfriarem. É por isso que há tanta precipitação na Terra. As médias terrestres globais são de aproximadamente 800 mm por ano.2


♦ Resfriamento das massas de ar

O resfriamento das massas de ar é produzido pela elevação. Os cientistas atmosféricos reconhecem três mecanismos para o resfriamento das massas de ar: (1) elevação como resultado da convergência horizontal, (2) elevação frontal e (3) elevação orográfica. Esses três processos têm um princípio físico distinto. No entanto, existe um quarto processo pouco conhecido, que está relacionado ao fato de que a superfície da Terra emite radiação de ondas longas, ou calor. Em muitos casos, esse calor é forte o suficiente para promover a elevação das massas de ar acima dele e, consequentemente, quantidades significativas de precipitação. Assim, a chuva pode ser produzida: (1) por convergência, particularmente na proximidade de uma fonte de umidade, (2) por ação frontal, (3) pelo ar sendo forçado a subir no lado barlavento das montanhas, ou (4) pelo ar sendo aquecido por baixo pela radiação de ondas longas da superfície da Terra.

(a) convergence
    
(b) frontal

(c) orographic
   
(d) thermal effects

Fig. 2   Elevação (a) por convergência, (b) frontal, (c) orográfica e (d) por efeitos térmicos.

Significativamente, os seres humanos são incapazes de alterar o curso dos três primeiros processos. A latitude determina a quantidade de elevação e precipitação, mas não pode ser alterada arbitrariamente. A proximidade dos oceanos determina a disponibilidade de umidade, mas as localizações geográficas são fixas. A presença de montanhas próximas determina a elevação, mas as montanhas não podem ser movidas. Por outro lado, os seres humanos podem ter uma contribuição sobre a condição e a textura da superfície da Terra. Eles podem mudar à vontade; de fato, eles fazem exatamente isso nos últimos 10.000 anos. Mudanças de floresta para estradas, da estrada para a agricultura e da agricultura para a área urbana modificam o caráter da superfície da Terra, alterando o balanço de radiação das ondas longas.


♦ Albedo

No presente contexto, o parâmetro mais importante é o pouco conhecido albedo, que é o coeficiente de refletividade de uma superfície. Albedo refere-se à quantidade de branco e varia no intervalo de 0 a 1. Um valor 0 representa um corpo negro, absorvendo toda a luz e eventualmente liberando a energia armazenada, emitindo calor. Caso contrário, a superfície aquecerá e queimará, e o fato de que isso não aconteceu durante o tempo geológico deve significar que quase toda a energia armazenada está sendo devolvida à atmosfera. Normalmente, a Terra absorve energia luminosa durante o dia e emite calor durante a noite. Mencionamos "quase toda" porque uma pequena porcentagem, aparentemente entre 0,1 e 0,3%, é armazenada na vegetação natural pelo processo de fotossíntese.3 É notável que uma porcentagem tão pequena seja suficiente para sustentar todos os ecossistemas da Terra.

Um valor de albedo igual a 1 representa um espelho, ou seja, uma superfície que reflete tudo. Superfícies brancas, como neve recém-caída, têm albedos na faixa de 0,75 a 0,95. O albedo médio da Terra é de 0,15 na superfície e de 0,34 nos níveis externos da atmosfera.4 O último valor é devido à cobertura de nuvens; as nuvens podem ser de cores muito mais claras que a superfície. Agora, aqui está a dicotomia: o albedo de uma floresta tropical está na faixa de 0,07 a 0,15, enquanto de um deserto superárido está entre 0,3 a 0,6, cerca de quatro vezes mais. Assim, as florestas tropicais receberão mais luz e liberarão mais calor, cerca de quatro vezes mais em média do que os desertos. As florestas tropicais têm um meio intrínseco de produzir chuva aquecendo o ar acima. Os desertos, por outro lado, com falta de calor suficiente por baixo, são incapazes de produzir elevação, produzindo o efeito oposto, subsidência, que dificulta a chuva. É por isso que os desertos geralmente são frios à noite.


♦ A vegetação produz sua própria chuva

Como o albedo da superfície determina em grande parte a quantidade de chuva, e a vegetação verde tem um albedo comparativamente baixo, sugere-se que a vegetação produz sua própria chuva. Agora, sabemos por experiência que um vaso de plantas precisa ser regado de vez em quando para crescer e florescer. No entanto, o vaso de plantas não foi colocado lá pela natureza. Onde colocou a vegetação, a Natureza o fez de maneira cibernética e auto-sustentável. Um ecossistema seguindo uma curva J deixaria de existir há muito tempo, como o vaso de plantas se não fosse regado. Em vez disso, os ecossistemas naturais seguem um processo de biofeedback, em que a causa e os efeitos se substituem regularmente, confundindo o cientista físico acostumado à mentalidade cartesiana de sempre x sendo x e y sendo y.

A vegetação traz água e paga da sua maneira. Quanto mais escuro o verde do ecossistema, mais água ele produz. Não porque a água está lá, mas porque o verde está lá. Obviamente, mais água significa mais verde e mais verde significa mais água, confirmando o comportamento não-cartesiano. Isso explica por que uma floresta tropical pode ter 50 mm de umidade atmosférica e, no entanto, produzir mais de 5.000 mm de precipitação anual. [Para fazer uma observação: Cherrapunji, em Meghalaya, leste da Índia, é o local mais chuvoso da Terra, com uma média de 11.270 mm de precipitação anual]. No outro extremo do espectro climático, as regiões superáridas, com cerca de 15 mm de umidade precipitável, produzem quase nenhuma chuva. [No deserto do Atacama, no norte do Chile, o ponto mais seco da Terra, a precipitação anual é de cerca de 25 mm e, em alguns pontos no meio do deserto, a chuva nunca foi observada ou registrada]. Assim, a razão de chuva/umidade anual em uma região superúmida pode ser muito maior que 100, enquanto uma razão comparável para uma região superárida pode ser próxima de 1.

The Amazon rainforest, which produces 1/6 of the fresh water on Earth

Fig. 3  A Floresta Amazônica, que produz 1/6 da água doce da Terra.5


♦ Albedo e antropogenia

De todos os fatores que contribuem para a formação da precipitação, nenhum está mais sujeito a alterações antropogênicas que o albedo da superfície. De um modo geral, uma diminuição nas áreas florestadas levará a menos chuva. No final, percebemos que podemos ter causado uma diminuição da chuva, substituindo as florestas por áreas agrícolas e urbanas. Esse processo, que vem ocorrendo há muito tempo, é autodestrutivo. Se violarmos, ou seja, reduzindo ou eliminando a vegetação, estamos mexendo na galinha que põe os ovos.

Uma estratégia sustentável deve ser baseada na preservação e conservação do ecossistema. Preservação das florestas remanescentes, aliada ao manejo de conservação das regiões sujeitas a alterações antropogênicas. Retornar a condições primitivas é panacéia; o melhor que podemos fazer é parar o processo de aumento de albedo e consequente desaparecimento gradual dos recursos hídricos da Terra. Acreditamos que a mudança climática também é possível em um contexto regional.


♦ Epílogo

Os reinos vegetal e animal são parceiros equiparáveis, e têm sido assim desde o início dos tempos. A vegetação ajuda a produzir a água que usamos para beber e tomar banho, e todos os outros usos. A vegetação não compete com os animais pela água. Se esse tivesse sido o design da natureza, o mundo que conhecemos teria escalado e caído na curva J há muito tempo. Ao invés disso, o funcionamento cibernético da biosfera garante que todos os componentes trabalhem em uníssono, complementando-se para garantir a sustentabilidade. Estratégias sociais e políticas públicas esclarecidas devem enfatizar a preservação e conservação; caso contrário, os desertos eventualmente irão dominar e nossos preciosos recursos hídricos desaparecerão.


1 World water balance and water resources of the Earth. (1978). USSR Committee for the International Hydrologic Decade, UNESCO, Paris.
2 Ponce, V. M., R. P. Pandey, and S. Ercan. (2000). Characterization of drought across climatic spectrum. Journal of Hydrologic Engineering, American Society of Civil Engineers, Vol. 5, No. 2, April.
3 Hutchinson, G. E. (1970). The Biosphere. Scientific American, Vol. 233, No. 3, September.
4 Ponce, V. M., A, K. Lohani, and P. T. Huston. (1997). Surface albedo and water resources: Hydroclimatological impact of human activities. Journal of Hydrologic Engineering, American Society of Civil Engineers,Vol. 2, No. 4, October.
5 Ponce, V. M. (1992). South American Explorer, Letters, Vol. 31, May.
190923 15:05